quinta-feira, 17 de julho de 2014

A LENDA DA PAXIÚBA: VERSÃO APÓCRIFA

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Por Renã Leite Pontes



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Por Renã Leite Correa Pontes

Há não muitas luas, após submeter-se a ritual de combate, tornara-se guerreiro-emplumado e saiu em missão:
Vigiar a fronteira do Norte, ameaçada pelos “peles de pano”.
Foram dias e noites de fome, frio, privações e agruras.
Durante uma incursão do inimigo, na defesa, foi transpassado na virilha, mas escapou com vida e trouxe aos anciões da tribo, preciosas informações, que em muito serviram para resguardar a soberania da comunidade. Os anciões da tribo, aos costumes, responderam magnanimamente. Na ausência de um sistema de saúde pública, liberaram, do tesouro comunitário, dez arcos para cobrir as despesas do tratamento.
O que o guerreiro, forçosamente chegado de missão, não sabia, era que, na sua ausência, na calada da noite, a “assembleia de pretextos” decidira, por escrutínio secreto, ceder à “oligarquia dos apuís” o monopólio dos rituais dos xamãs e, ainda, as patentes da manipulação de toda a biodiversidade da floresta, além de deslocar para, bem longe, o hospital homeopático:
- Agora, também, doente nenhum tem mais direito a acompanhante!
Na busca do socorro, alheio aos perigos do caminho, o jovem ferido percorreu desacompanhado a distância que conduzia ao hospital dos espíritos benzedores das ervas, sem compreender, ainda, a plenitude do significado da intermediação da milenar cultura guardada pelos pajés.
Na entrada daquele local sagrado, era obrigatória a pronúncia de certas palavras místicas, além da realização de algumas misuras[1], aos olhos leigos, para ser atendido.
Cumprido o ritual, o caminhante foi atendido na triagem, por um sujeito cujo comportamento mais se assemelhava ao de um “encarregado de barracão”, vestido de “auxiliar de curandeiro” - o chefe da assistência social, que acumulava também as funções do setor de tesouraria.
- Foi há dois dias...
- E o pagamento?
- Para o pagamento, eu trago dez arcos do tesouro dos anciãos, para trocar pelo chá encarnado.
- Deixe-me ver, então, o ferimento.
- Hummm, ai.
- Não é ferimento de morte para um corpo forte como o seu. Isto cura com chá de unha de gato mesmo, tomado por dez dias... Mas, você só trouxe dez arcos. Por este material, só posso lhe fornecer chá para cinco dias.
-Mas, o certo não é eu tomar os dez dias? Eu preciso me curar porque o meu posto está abandonado, meu trabalho espera por mim.
- Veja só, meu bom rapaz, como está se processando o atendimento aqui agora. Por dois arcos, aqui, damos chá para um dia. Você trouxe dez arcos. Faça as contas e verá como estou no justo.
Mas....
- Vamos fazer o seguinte, você volta e vai falar com os colarinhos-brancos, diz que necessita de mais dez arcos e conta a sua história. Você é um guerreiro valoroso, comprometido, tem serviço prestado e valores para penhorar. Você sabe como fazer.
- Ah, não, eu não vou entrar nestes esquemas. O meu avó dizia: “Dê a morte a um homem para continuar homem.”. Estas pessoas nos dão as coisas, mas, em compensação, cobram, de volta, a nossa consciência. Eu sei que estes privilégios individuais prejudicam a tribo  e produzem a fome de uns, em detrimento da fartura de poucos, além de ser a causa da pobreza e sofrimento do nosso povo. Eu posso morrer muito feliz sem precisar passar por estas humilhações.
- A franqueza do jovem irritou o funcionário, porque soou como uma crítica ao canibalismo das raposas, dita diretamente à chefa do covil.
O interlocutor, então, pigarreou e retrucou
- Ah, então o jeito é você tomar só por cinco dias. O resto seu corpo reage. Mas, o que te custa mesmo ir lá?
- Não, definitivamente, eu não vou cometer nenhum ato contra a minha consciência, nem o meu sentido de decoro moral.
- Então, não é por má vontade, meu rapaz, mas assim você me deixa sem alternativa. Você entende? São as novas regras...
E, se eu te entregar também o meu arco e meus “cestus”? É tudo o que tenho. Este arco é espólio de guerra. Pertenceu a um antigo chefe tucandeira e tem um valor simbólico em meio a nossos bravos.
Bem, com o arco e os “cestus”, eu poderia te dar sete dozes e meia.
Argumentou o paciente:
- Olha, onze arcos não são pouca coisa, considerando que os curumins da nova geração, não mais têm demonstrado interesse na arte de fazer arcos. Nós estamos sob ataques constantes, nos quais, com frequência, perdemos armas e vidas. A cada dia está mais difícil a nossa defesa.
- Sabe, meu bom rapaz, eu compreendo sua necessidade e reconheço o seu valor e dedicação. E, para provar o interesse desta casa na cura da ferida de um dos nossos benfeitores, te dou oito dozes, mas a associação fica com todos os implementos que você carrega consigo. Estamos implementando um importante trabalho de resgate da nossa reputação institucional e, não queremos que nossos beneficiários saiam daqui pensando que não fazemos o máximo para prestarmos um bom serviço. Sei que me entende.
Foi aí, então, que a impaciência do jovem guerreiro aflorou, motivada, quem sabe, pelo estresse do ferimento
- Sabe, desde que cheguei aqui hoje, tenho percebido que o senhor não tem demonstrado nenhuma preocupação com a minha cura, mas apenas em lucrar com a minha doença. Olha, esta instituição não está me prestando nenhum favor, além das suas obrigações. Reconheça que fui ferido em combate para proteger nossa tribo: isso inclui o senhor, sua família e até esta instituição comercial que o senhor chama de “casa”.
Quando o jovem guerreiro pronunciou as últimas palavras, por tratar-se de uma tremenda verdade, o ânimo do ajudante de curandeiro atingiu a estratosfera.
- Bem, nestes termos, vou lhe dizer também a minha opinião a respeito das suas reclamações. A sua relação com os anciãos da tribo... Você tem que entender que aqueles velhos atiram com a flecha dos outros, têm palavra de político. Eu admiro a sua sinceridade, mas, na verdade, penso que você não passa de um megalomaníaco. Não é por sua falta que deixaremos de estar protegidos. Ademais, aqui, nós reconhecemos você é como um crítico acerbo dos costumes desta casa. Reconheça, também, que você não passa de um número fácil pode se reproduzir.
Novamente ferido, desta vez, na alma, sentindo-se acuado. Nem os dezessete idiomas que falava, com fluência, foram capazes de fornecer, ao índio, uma simples palavra que fosse. O sofrido guerreiro, aspirando a cura, entregou àquele comerciante vestido de curandeiro, em troca da possibilidade de cura, a materialidade e o impulso da sua defesa.
No longínquo retorno à taba, por falha do serviço de contraespionagem, os implementos ora penhorados fizeram  falta na defesa. Ferido, cansado e com sede, o guerreiro solitário tornou-se presa fácil dos “pés de couro”.
Por ser ingrediente valioso e exportável, arrebataram-lhe o chá.
Com movimentos pesados e descoordenados, o guerreiro defendeu-se com as últimas forças: pulou, ainda correu, e bateu, e matou, se trepou,  mas  caiu, foi ferido e agravou a ferida, e verteu o restante da vida.
Por fim, subjugado, retesado, entregou seu alento a Tupã.
Passadas três luas, os queridos de Ágrafo vieram caçá-lo. Ao encontrá-lo, colheram-lhe o corpo e o plantaram, a sete palmos, em local transmontano, aos costumes, depois da floresta da grande gameleira, na margem de lá do rio, a casa de Tupã...
A história, em detalhes, foi registrada em notas musicais, no Akasha[2]. Quando os biógrafos concluíram o registro, Tupã o leu e chorou... Em seguida, ficou aborrecido e, além de vingar a injustiça e a morte do guerreiro, limpou-lhe o nome, levou-lhe a honra e fez brotar da sua tumba, a palmeira conhecida pelo nome de paxiúba. A planta logo passou a servir para tudo: habitação, flechas... era imponente, rija, hidrófila e resistente as intempéries da seca. Tupã também a fez fértil e reproduziu-lhe as milhares pela floresta.

E, assim, um nome foi lembrado, a história foi contada e recontada aos curumins das tribos, e com a ajuda do alto, o jovem guerreiro seguiu, através da natureza,  protegendo e servindo o seu povo.

[1] Gestos desajeitados e cômicos, palhaçada (N. do A.).
[2] Palavra sânscrita que significa "céu", "espaço" ou "éter" (N do A.).
Foto: Este escriba e meu ex-aluno Alan Alves, descendente das nações Huni Kui e Apurinã, sujeito especulativo, inteligente e estudioso.

domingo, 6 de julho de 2014

O PRIMEIRO HOMEM A PISAR NO SOLO BRASILEIRO CAMINHOU NO ACRE

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       Renã Leite Pontes*

Habita na natureza humana um justificável sentimento de altivez que inspira o poeta a exultar, com zelo sacerdotal, sua gente e sua “aldeia”. Mas no nosso singularíssimo caso, admirando o fulgor da nossa História, o que fazemos aqui é asseverar o óbvio: que o povo acreano tem motivos sobejos para se orgulhar dos seus ancestrais e dos hercúleos esforços que despenderam para que hoje pudéssemos ser brasileiros. Na tentativa de alimentar o clarão do enunciado, nos serviremos, inicialmente, de pesquisas realizadas por um grupo de antropólogos espanhóis e islandeses, em consórcio com a famosa empresa Code Genetics e publicadas originalmente em 2010, no The Official Journal of the American Association of Physical Anthropologists, a partir de exaustiva investigação e análise de rastros de DNA mitocondrial encontrado nas Américas.


Com fundamento nos citados vestígios, os estudiosos encontraram indícios de que o primeiro homem a pisar no solo brasileiro, por nossas palavras, caminhou incialmente no Acre, há uns 30 mil anos, buscando novas terras e fugindo, possivelmente, das intempéries de uma possível era glacial.  Provavelmente, essa história começou na África, quando o homem africano atravessou o Mar Mediterrâneo e se uniu - por instinto de preservação - ao homem europeu, russo e chinês, em caravana com destino a Sibéria (Ásia) e, a partir do Cabo Dezhnev (ponto extremo oriental do Continente Asiático), em grupo, atravessaram os 85 km do estreito de Béring até chegarem ao Cabo Prince of Wales (ponto extremo ocidental do continente americano, no Alaska, América do Norte). Dali a incursão continuou sua rota buscando novas terras, tomando a direção Sul, rumo a América Central, unindo, no caminho, suas raças e culturas às dos povos anahuac, incas, maias, astecas, toltecas, dentre outros.
Mais além, na trajetória da caravana, provavelmente, quando aquela mescla de povos alcançou a região setentrional da Cordilheira dos Andes, por afinidade cultural e linguística, alguns grupos seguiram em direção ao território do atual Chile; outros rumaram para as terras onde hoje é o Acre, deixando, no caminho, importante vestígio idiomático, médico, arquitetônico e demais traços da sua mescla cultural e genética com as civilizações autóctones - desta vez - da América do Sul. Só então, decorrido um tempo para adaptação e reconhecimento da “Terra dos Grandes Geoglifos”, o Acre, é que a miscigenação descendente daqueles povos alcançou à região central do Brasil e, mais posteriormente, ao extremo Leste do “Florão da América”, na plenitude dos seus 7,367 km de orla marítima.   
Apenas por justiça e referência a exuberância das nossas raízes antropológicas, - longe de querermos diminuir a história dos demais estados brasileiros, nem confeitar nossa torta com a cereja dos outros - apenas ilustramos aqui, mais um contraste que dá grandeza a nossa História; a exemplo, o gaúcho fez a sua famosa Guerra dos Farrapos (1835-1845), movimento que não foi popular, nem de esfarrapados, mas de grandes fazendeiros que queriam diminuir o poder imperial, aumentando a autonomia provincial, pagando menos impostos, principalmente sobre o charque - à época, o produto principal da economia guasca.
Conforme exemplificamos, salta à claridade da História do Brasil o fato de que importantes estados da federação fizeram revoluções visando justos ou injustos interesses locais. Interesses que, de algum modo, colocaram em risco a unidade nacional. O Estado do Acre, não! O caso do Acre é diferente porque os acreanos fizeram quatro anos de revolução para agregar ao Brasil o território que hoje é o Acre (uma área estrangeira e inóspita - cinco vezes o tamanho da Bélgica), enfrentando e afrontando, no devido tempo - com armas em punho - o isolamento, a fome, a Bolívia, o Peru e ao próprio Brasil. Isso porque em julho de 1899, o Brasil interveio no conflito do primeiro período da Revolução Acreana e, além de não apoiar os revolucionários acreanos sequiosos pelo status de brasilidade, ainda reconheceu a região do Acre como território boliviano, enviando tropas brasileiras para dissolver aquela etapa da Revolução, inclusive prendendo e deportando a Luiz Gálvez Rodríguez de Arias - líder maior daquela fase da revolução e da República Independente do Acre. Tamanha foi a decepção que o Imperador se entregou pacificamente, sem armas, porque não queria guerrear contra brasileiros.
Conforme vimos, por sua Antropologia e legado histórico valente, o Acre é uma terra valorosa. O acreano que aqui ficou é, acima de tudo, um bravo sobrevivente. Por isso, este artigo enaltece o Acre e sua gente que, apesar dos tropeços de ontem e os de hoje não recua e não cai, avançando, cotidianamente, sem temor, na peleja pela sobrevivência, nestas terras esplêndidas que, parafraseando Galeano, poderia dar a todos, o que a quase todos nega.



* Renã Leite Pontes - Psicopedagogo, Escritor e Poeta; Membro Vitalício da International Writers end Artists Association – IWA, Toledo, Ohio, USA; Membro Honorário do Instituto Brasileiro de Culturas Internacionais – IMBRASCI, RJ; Membro Fundador da Academia dos Poetas Acreanos; Professor de Educação Física, no Acre.