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Por Renã Leite Pontes
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Por Renã Leite Correa Pontes
Há não muitas luas, após
submeter-se a ritual de combate, tornara-se guerreiro-emplumado e saiu em
missão:
Vigiar a fronteira do Norte,
ameaçada pelos “peles de pano”.
Foram dias e noites de fome, frio, privações
e agruras.
Durante uma incursão do inimigo, na
defesa, foi transpassado na virilha, mas escapou com vida e trouxe aos anciões
da tribo, preciosas informações, que em muito serviram para resguardar a
soberania da comunidade. Os anciões da tribo, aos costumes, responderam
magnanimamente. Na ausência de um sistema de saúde pública, liberaram, do
tesouro comunitário, dez arcos para cobrir as despesas do tratamento.
O que o guerreiro, forçosamente
chegado de missão, não sabia, era que, na sua ausência, na calada da noite, a
“assembleia de pretextos” decidira, por escrutínio secreto, ceder à “oligarquia
dos apuís” o monopólio dos rituais dos xamãs e, ainda, as patentes da
manipulação de toda a biodiversidade da floresta, além de deslocar para, bem
longe, o hospital homeopático:
- Agora, também, doente nenhum tem mais
direito a acompanhante!
Na busca do socorro, alheio aos
perigos do caminho, o jovem ferido percorreu desacompanhado a distância que
conduzia ao hospital dos espíritos benzedores das ervas, sem compreender,
ainda, a plenitude do significado da intermediação da milenar cultura guardada
pelos pajés.
Na entrada daquele local sagrado,
era obrigatória a pronúncia de certas palavras místicas, além da realização de
algumas misuras[1], aos olhos leigos, para ser atendido.
Cumprido o ritual, o caminhante foi
atendido na triagem, por um sujeito cujo comportamento mais se assemelhava ao
de um “encarregado de barracão”, vestido de “auxiliar de curandeiro” - o chefe
da assistência social, que acumulava também as funções do setor de tesouraria.
- Foi há dois dias...
- E o pagamento?
- Para o pagamento, eu trago dez
arcos do tesouro dos anciãos, para trocar pelo chá encarnado.
- Deixe-me ver, então, o ferimento.
- Hummm, ai.
- Não é ferimento de morte para um
corpo forte como o seu. Isto cura com chá de unha de gato mesmo, tomado por dez
dias... Mas, você só trouxe dez arcos. Por este material, só posso lhe fornecer
chá para cinco dias.
-Mas, o certo não é eu tomar os dez
dias? Eu preciso me curar porque o meu posto está abandonado, meu trabalho
espera por mim.
- Veja só, meu bom rapaz, como está
se processando o atendimento aqui agora. Por dois arcos, aqui, damos chá para
um dia. Você trouxe dez arcos. Faça as contas e verá como estou no justo.
Mas....
- Vamos fazer o seguinte, você
volta e vai falar com os colarinhos-brancos, diz que necessita de mais dez
arcos e conta a sua história. Você é um guerreiro valoroso, comprometido, tem
serviço prestado e valores para penhorar. Você sabe como fazer.
- Ah, não, eu não vou entrar nestes
esquemas. O meu avó dizia: “Dê a morte a um homem para continuar homem.”. Estas
pessoas nos dão as coisas, mas, em compensação, cobram, de volta, a nossa
consciência. Eu sei que estes privilégios individuais prejudicam a tribo e produzem a fome de uns, em detrimento da fartura
de poucos, além de ser a causa da pobreza e sofrimento do nosso povo. Eu posso
morrer muito feliz sem precisar passar por estas humilhações.
- A franqueza do jovem irritou o
funcionário, porque soou como uma crítica ao canibalismo das raposas, dita diretamente
à chefa do covil.
O interlocutor, então, pigarreou e
retrucou
- Ah, então o jeito é você tomar só
por cinco dias. O resto seu corpo reage. Mas, o que te custa mesmo ir lá?
- Não, definitivamente, eu não vou
cometer nenhum ato contra a minha consciência, nem o meu sentido de decoro
moral.
- Então, não é por má vontade, meu rapaz,
mas assim você me deixa sem alternativa. Você entende? São as novas regras...
E, se eu te entregar também o meu
arco e meus “cestus”? É tudo o que tenho. Este arco é espólio de guerra.
Pertenceu a um antigo chefe tucandeira e tem um valor simbólico em meio a nossos
bravos.
Bem, com o arco e os “cestus”, eu poderia
te dar sete dozes e meia.
Argumentou o paciente:
- Olha, onze arcos não são pouca
coisa, considerando que os curumins da nova geração, não mais têm demonstrado interesse
na arte de fazer arcos. Nós estamos sob ataques constantes, nos quais, com
frequência, perdemos armas e vidas. A cada dia está mais difícil a nossa
defesa.
- Sabe, meu bom rapaz, eu compreendo
sua necessidade e reconheço o seu valor e dedicação. E, para provar o interesse
desta casa na cura da ferida de um dos nossos benfeitores, te dou oito dozes,
mas a associação fica com todos os implementos que você carrega consigo. Estamos
implementando um importante trabalho de resgate da nossa reputação
institucional e, não queremos que nossos beneficiários saiam daqui pensando que
não fazemos o máximo para prestarmos um bom serviço. Sei que me entende.
Foi aí, então, que a impaciência do
jovem guerreiro aflorou, motivada, quem sabe, pelo estresse do ferimento
- Sabe, desde que cheguei aqui hoje,
tenho percebido que o senhor não tem demonstrado nenhuma preocupação com a
minha cura, mas apenas em lucrar com a minha doença. Olha, esta instituição não
está me prestando nenhum favor, além das suas obrigações. Reconheça que fui
ferido em combate para proteger nossa tribo: isso inclui o senhor, sua família
e até esta instituição comercial que o senhor chama de “casa”.
Quando o jovem guerreiro pronunciou
as últimas palavras, por tratar-se de uma tremenda verdade, o ânimo do ajudante
de curandeiro atingiu a estratosfera.
- Bem, nestes termos, vou lhe dizer
também a minha opinião a respeito das suas reclamações. A sua relação com os
anciãos da tribo... Você tem que entender que aqueles velhos atiram com a
flecha dos outros, têm palavra de político. Eu admiro a sua sinceridade, mas,
na verdade, penso que você não passa de um megalomaníaco. Não é por sua falta
que deixaremos de estar protegidos. Ademais, aqui, nós reconhecemos você é como
um crítico acerbo dos costumes desta casa. Reconheça, também, que você não
passa de um número fácil pode se reproduzir.
Novamente ferido, desta vez, na
alma, sentindo-se acuado. Nem os dezessete idiomas que falava, com fluência,
foram capazes de fornecer, ao índio, uma simples palavra que fosse. O sofrido guerreiro,
aspirando a cura, entregou àquele comerciante vestido de curandeiro, em troca da
possibilidade de cura, a materialidade e o impulso da sua defesa.
No longínquo retorno à taba, por
falha do serviço de contraespionagem, os implementos ora penhorados
fizeram falta na defesa. Ferido, cansado
e com sede, o guerreiro solitário tornou-se presa fácil dos “pés de couro”.
Por ser ingrediente valioso e
exportável, arrebataram-lhe o chá.
Com movimentos pesados e
descoordenados, o guerreiro defendeu-se com as últimas forças: pulou, ainda
correu, e bateu, e matou, se trepou,
mas caiu, foi ferido e agravou a
ferida, e verteu o restante da vida.
Por fim, subjugado, retesado,
entregou seu alento a Tupã.
Passadas três luas, os queridos de
Ágrafo vieram caçá-lo. Ao encontrá-lo, colheram-lhe o corpo e o plantaram, a
sete palmos, em local transmontano, aos costumes, depois da floresta da grande
gameleira, na margem de lá do rio, a casa de Tupã...
A história, em detalhes, foi
registrada em notas musicais, no Akasha[2]. Quando os biógrafos concluíram o
registro, Tupã o leu e chorou... Em seguida, ficou aborrecido e, além de vingar
a injustiça e a morte do guerreiro, limpou-lhe o nome, levou-lhe a honra e fez
brotar da sua tumba, a palmeira conhecida pelo nome de paxiúba. A planta logo
passou a servir para tudo: habitação, flechas... era imponente, rija, hidrófila
e resistente as intempéries da seca. Tupã também a fez fértil e reproduziu-lhe as
milhares pela floresta.
E, assim, um nome foi lembrado, a
história foi contada e recontada aos curumins das tribos, e com a ajuda do
alto, o jovem guerreiro seguiu, através da natureza, protegendo e servindo o seu povo.
[1] Gestos desajeitados e
cômicos, palhaçada (N. do A.).
[2] Palavra sânscrita que
significa "céu", "espaço" ou "éter" (N do A.).
Foto: Este escriba e meu ex-aluno
Alan
Alves, descendente das nações Huni Kui e Apurinã, sujeito especulativo,
inteligente e estudioso.
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